Atos Humanos de Han Kang
- Sofia
- 29 de nov. de 2020
- 3 min de leitura

Olá, Ilustríssimos e Ilustríssimas,
A ausência nem sempre é longa, como tal, eis uma nova leitura terminada, portanto, uma nova recomendação.
O livro: Atos Humanos de Han Kang.
A minha edição é da D. Quixote, livro publicado em Portugal em 2017, de capa mole, com 228 páginas, dividido em sete capítulos. A autora Han Kang é sul coreana, tem 49 anos e este fora o seu segundo livro cá, seguido d'A Vegetariana.
A opinião:
Atos Humanos conduz-nos, através de uma narrativa envolvente e intensa, crua e emocional, inicialmente, na busca de Dong-ho por Jeong-dae, após desencontro forçado pela violência das manifestações, nomeadamente, estudantis, em 1980. No entanto, a narração cruza perspetivas de sete pessoas diferentes, que persistem num vínculo único: a violência da repressão na Coreia do Sul.
Para compreender melhor esta obra, é necessário conhecer que a Coreia do Sul viu-se imersa num período de fascismo bem longo, este acentuando-se após a morte de Park Chung-hee, em 1980, por golpe de estado, cujo novo líder instaura uma nova lei marcial, prevalecendo uma ditadura miliar castrante e opressiva, opondo-se à ilusão transmitida ao estrangeiro, que percecionavam a Coreia do Sul, na época, como um país em ascensão económica e industrial, cada vez mais obsequioso aquando das ligações comerciais com o ocidente. Ora, não querendo ser a “Capitã Óbvia”, mas sendo-o na mesma, alerto para a característica permanente e sistemática das ditaduras, que mesmo depois de ultrapassarmos várias, em vários países, ela volta camuflada de liberdade e assombra o povo. Quase como uma doença epidémica, é transmitida oralmente e visualmente, por premissas ocas e bacocas, imagens doentes e frágeis, pela fome de força e sede de poder, pelo egoísmo e ausência de empatia. Pergunto-me se existe alguma cura…
Congruentemente, o aumento das manifestações e protestos contrabalançava com o aumento da repressão, mas a resposta militar era ávida de violência, os massacres eram constantes e os direitos eram esquecidos. O medo instaurava-se rapidamente, o amontoado de corpos era cada vez maior, tal como a fúria lancinante com que eram assassinados e abandonados, pela força militar.
A cidade de Qwangjo ficou particularmente cunhada por este período, pois milhares de estudantes, por saírem à rua e manifestarem o seu desagrado, faleceram nas mãos dos militares, que disparavam contra o seu povo, desarmado. Além destes massacres em praça pública, de menores e maiores de idade, outras milhares de pessoas foram aprisionadas, dentro destas, uma maioria fora enviada para reabilitação física e psicológica. Pois bem, conseguimos depreender facilmente, que esta reabilitação seria uma metáfora para tortura, estupro, assassinato em massa, …
Han Kang tem uma escrita belíssima, empática e corajosa; apresenta-nos Dong-ho na primeira pessoa, como se nós, os leitores, fizéssemos parte desta narrativa e sentíssemos, de forma integral, a crueza destas existências. A duplicidade temporal, viajando entre o presente e o passado, quando conveniente, permite-nos compreender as lascas que deixa na existência de um ser, a dor, a tortura, a amargura, a impotência.
A obra apresenta-nos uma perspetiva história e social de um acontecimento escabroso, de diversos pontos de vista, variando em idade, em género e em estado de espírito. A morte é trabalhada, tanto de uma forma espiritual e maravilhosa, como de uma forma crua e bruta, como por exemplo, o suicídio, e toda esta abordagem enche-nos de vergonha e culpa, por ausência de resposta.
Por último, acho relevante enaltecer que a autora tinha 10 anos, aquando do agravamento da repressão, viveu na cidade num curto espaço de tempo, teve contacto com a realidade repressiva, pois sendo o pai professor, era uma das suas preocupações, e que a personagem Dong-ho é real, era aluno, inscrito à parte, de seu pai. Esta baseou-se nos conhecimentos da época, na sua memória, em literatura e em relatos da própria família, da família de Dong-ho e de outros, para construir uma obra que respeitasse, minimamente, os factos. Por outro lado, quis dar uma voz às vítimas destes atentados governamentais, permitir-lhes um lugar e um espaço para que continuassem a sua luta, na literatura.
Citação destacada:
“(...) descrevia as sequelas da tortura como iguais às que sofriam as vítimas de envenenamento radioativo». (...) As células tornam-se cancerosas, a vida ataca-se a si própria.”
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